segunda-feira, 6 de julho de 2009

Fernando Pessoa


Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. Asneira? Impossível? Sei lá! Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. Não se zanguem com ela. São tolerantes com ela. O que era eu um vaso vazio? Olham os cacos absurdamente conscientes, Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. Olham e sorriem. Sorriem tolerantes à criada involuntária. Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco. E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Álvaro de Campos, 1929

Um comentário:

  1. Antônio Mariano Júniorterça-feira, julho 14, 2009

    Do "Livro do Desassossego", abri e caiu em tal página. Escolhi esse.

    -Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, inde nada de activo intervém, onde por fim até nossa consciência de nós mesmos se atola num lodo - só aí nesse morno e húmido não-ser, a abdicação da acção competentemente se atinge. Não querer compreender, não analisar...Ver-se como à natureza; olhar para as suas impressões como para um campo - a sabedoria é isto.

    Beijos e boas postagens!

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